Quando os caminhos habituais da diplomacia se esgotam, a política internacional costuma buscar alternativas em lugares que ainda inspiram alguma ideia de estabilidade, permanência e escuta. O Vaticano é um desses raros lugares. Com seu tempo próprio, seus corredores silenciosos e sua autoridade construída ao longo de séculos, ele surge como hipótese simbólica para sediar conversas de paz entre Rússia e Ucrânia. Uma ideia que, à primeira vista, pode parecer romântica, mas que carrega consigo um acúmulo histórico e estratégico digno de atenção.
A figura do Papa Leão XIV, recém-eleito, ocupa o centro dessa especulação. Trata-se de um pontífice ainda envolto em expectativas, mas já identificado como alguém disposto a reativar o papel da Santa Sé como interlocutora global, especialmente em tempos de conflito. Seu discurso sobre o possível uso do Vaticano como terreno neutro para mediação é ousado, mas não inédito.
O caso mais lembrado é o da crise entre Argentina e Chile, no final dos anos 1970. À beira de uma guerra por disputas territoriais no Canal de Beagle, os dois países — ambos sob regimes militares — recorreram à mediação papal. A decisão veio após a Argentina rejeitar um laudo arbitral que favorecia os chilenos e iniciar preparativos para uma ofensiva. A tensão era real, com tropas mobilizadas e rotas de invasão traçadas. A intervenção do Papa João Paulo II, articulada por meio do cardeal Antonio Samoré, foi o ponto de inflexão. A guerra foi evitada.
Mas é importante não romantizar esse episódio. A mediação da Igreja Católica só foi bem-sucedida porque atuou sobre um terreno fértil. A liderança argentina tinha vínculos culturais profundos com o catolicismo. A linguagem da fé era respeitada, a figura do Papa ainda carregava peso moral entre os militares e a sociedade civil. Havia, ainda, pressões externas, especialmente dos Estados Unidos, e divisões internas que tornavam a negociação uma alternativa viável. A Igreja não foi a única responsável pela paz, mas sua presença ajudou a legitimar uma saída política.
Transportar esse modelo para o atual conflito entre Rússia e Ucrânia exige mais do que boa vontade. O cenário é radicalmente distinto. A guerra em curso não é apenas uma disputa territorial. É também um confronto identitário, histórico e ideológico. A Rússia mobiliza símbolos da ortodoxia religiosa, mas dentro de um nacionalismo que se afastou do universalismo católico. A Ucrânia, por sua vez, afirma sua soberania com base em princípios seculares e em uma visão de futuro atrelada à integração europeia. Não há, entre os dois lados, o mesmo repertório simbólico que permitiu à Igreja operar com eficácia no caso do Beagle.
Isso não significa, no entanto, que o Vaticano seja irrelevante. Pelo contrário. Sua diplomacia tem características únicas. A Santa Sé não é um Estado comum. Sua atuação não está ancorada em poder militar, nem em interesses econômicos imediatos. Ela dispõe de redes de comunicação globais, prestígio moral difuso e um tipo de autonomia institucional que a permite conversar com atores que não dialogam entre si. Em um cenário de estagnação diplomática, isso pode ser um ativo valioso.
A proposta de sediar negociações em Roma, sob a mediação ou a supervisão do Papa, deve ser entendida mais como abertura de espaço do que como imposição de solução. O Vaticano não substituirá acordos de segurança, nem poderá definir os termos de uma eventual paz. Mas pode criar as condições para que atores hostis compartilhem, ao menos por um momento, o mesmo teto. E isso, em determinadas conjunturas, já é um avanço significativo.
Ainda assim, é preciso lembrar que nenhuma ideia, por mais poderosa que seja, age no vazio. Ela precisa de condições para produzir efeitos. A linguagem da paz que parte do Vaticano só encontrará terreno fértil se houver pressões externas coordenadas, disposição mínima entre as partes, redes diplomáticas ativas e uma percepção de que negociar pode ser mais útil do que resistir. A fé, por si só, não substitui coalizões políticas, regimes compatíveis, nem as dinâmicas de poder no sistema internacional. Mas pode moldar os contornos do possível, criando espaço para alternativas antes impensáveis.
A sugestão de que o Vaticano possa sediar conversas entre Rússia e Ucrânia é, nesse sentido, uma lembrança de que o campo internacional também se constrói com símbolos, identidades e crenças. Mas símbolos não vencem sozinhos. A paz é um processo político, e a religião, quando age, o faz melhor quando se transforma em força diplomática.
O Papa Leão XIV pode oferecer o altar, o silêncio e a história. Mas a liturgia da paz exige outros oficiantes: governos, alianças, pressões e concessões. Sem isso, qualquer gesto, por mais nobre que pareça, corre o risco de ser apenas mais um capítulo no longo evangelho das boas intenções.
*Guilherme Frizzera é Doutor em Relações Internacionais e coordenador do curso de Relações Internacionais da UNINTER.
Foto: Rodrigo Leal