Bebês Reborn e a sociedade da perversão – *Marco Antonio Spinelli

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Nessas últimas semanas, venho sendo solicitado por muitas pessoas, da família, clientes, seguidores, colegas, a levantar a minha voz para falar do fenômeno dos bebês Reborn (em tradução livre, bebês nascidos novamente. Percebe? O problema já começa no nome). Para quem vive protegido do mundo das Redes Sociais e do Fantástico, bebês Reborn são bonecas super realistas que gemem, se mexem, comem, dormem, choram, como um bebê nascido de forma tradicional, com mãe e pai humanos.

Isso está gerando uma série de comportamentos bizarros, como reuniões de mães, postagens nas Redes Sociais e criação de uma espécie de tribo de bonecas realistas e os orgulhosos e preocupados pais e mães desses bebês-bonecas. Uma advogada postou que uma “mãe” do quase bebê veio discutir a guarda do mesmo com o marido. A guarda e as despesas.

Confesso que estava fugindo do tema. Quando assisti psicanalistas, psiquiatras e pastores falando sobre o assunto, aprofundou-se minha preguiça. É fácil espinafrar essas pessoas e enquadrá-las em algum transtorno delirante ou dissociativo, previstos pelos manuais de Psiquiatria. Levantar a voz para me somar à onda de ridículo e escândalo voltada a esse grupo. Isso é obviamente um comportamento bizarro numa sociedade que joga os holofotes sobre pessoas com comportamentos bizarros. Gostaria de avisar que esse artigo vai recusar apontar dedos ou diagnósticos contra essas pessoas. Vamos recuar as nossas lentes e tentar entender como nosso isolamento do Real está criando grupelhos e tribos que não se sentem limitados por essa velha e fora de moda senhora, a Realidade, criando sua própria narrativa, imposta ao mundo como verdade.

Posso usar como exemplo a história desse menino-pastor, que propaga a história que sua capacidade de pregar a palavra deriva de um milagre: ele nasceu surdo e mudo e, através da oração de sua mãe, formou as cordas vocais e os tímpanos que não existiam. Não existe nenhum exame de imagem ou avaliação médica que comprovem essa narrativa. A sua mãe, e empresária, afirma que perdeu todos os registros. Mas isso é secundário. A narrativa fantástica encontra sempre gente desesperada para acreditar. Sem necessidade de comprovação.

Quando eu dava aula de Psiquiatria a alunos da faculdade de Medicina, ensinava da importância de se testar nos pacientes a Função do Real. O que seria isso? Seria a capacidade de avaliar se aquilo que se percebe ou acredita corresponde, ou não, à Realidade. Um marido que acusava a esposa de infidelidade, por exemplo. Ele pode basear sua acusação em mensagens do WhatsApp, curtidas no Instagram ou à chegada da esposa em casa com cheiro de sabonete de Motel, seja lá o que isso significa. Ou simplesmente afirmar que encontrou um maço de cigarros na mureta de sua casa. Mas quem garante que aquele maço pertence ao Ricardão? O delirante afirma que tem certeza que aquele cigarro não é seu e foi esquecido pelo amante antes de fugir. Essa é uma alteração da Função do Real: uma convicção delirante que aquele maço foi deixado pelo amante ou por um agente da KGB. Ou do Mossad. Sem necessidade de comprovação.

Hoje, vivemos em nossa civilização digital a Pós Verdade: cada um espalha notícias e narrativas falsas, que são prontamente propagadas como verdade pelos tiozinhos do WhatsApp, como verdades absolutas. Nos Estados Unidos houve o caso de uma pizzaria destruída por uma multidão enfurecida porque circulou a história falsa que em seu subsolo havia um local que era habitado por pedófilos. Sem necessidade de checagem dos fatos.

A Perversão, do ponto de vista psicodinâmico, é justamente essa tendência de impor à Realidade a minha vontade, sem necessidade de ancoragem no Real. O perverso inventa e manipula vontades e consciências no sentido de sua própria vontade e prazer. Se eu tenho vontade de apalpar uma moça bonita, vou lá e faço sem precisar saber se ela consente ou não com aquilo. Imponho minha vontade e pronto. Essa é a dinâmica do abuso. Eu quero, eu imponho e acabou. Lembro de um cliente que adoeceu com um chefe que prometeu ao diretor uma meta inatingível a passou a cobrar e pressionar a equipe para entregar o resultado impossível. Isso é uma forma de Perversão: impor a minha vontade sobre a Realidade. E dane-se o outro.

O mal estar que sentimos com o fenômeno dos bebês Reborn é mesmo que meu cliente tem com a mentira do seu chefe: é a imposição de uma ideia, uma fantasia, por sobre a Realidade, criando uma Realidade paralela que ignora e não se incomoda com a verdade. Não é um bando de adultos brincando de boneca. É uma vivência que ignora, ou não se importa, com a instância do Real. Quem está fora desse túnel de Realidade tem a impressão que o mundo está acabando. O Apocalipse é um bando de pessoas ninando bebês de plástico, levando para o Posto de Saúde com uma gripe imaginária.

Essa é a Perversão que nos assola a todos: vivemos dentro do Virtual uma fantasia de perfeição enquanto ignoramos a dor e a imperfeição debaixo de nosso nariz. Pois a Realidade é suja e imperfeita. Um Bebê de verdade vomita, tem cólicas, tira o sono de seus pais. Não é uma experiência fácil, nem previsível.

O mundo virtual promete uma vida sem frustrações, sem noites em claro. Só sorrisos e fotos para colocar nos chás e encontros dessa nova comunidade. O que incomoda não é a fantasia levada ao extremo. O que incomoda é a perda impressionante do contato com a Realidade. E ignorar a realidade nunca termina bem para ninguém.

*Marco Antonio Spinelli é médico, com mestrado em psiquiatria pela Universidade São Paulo, psicoterapeuta de orientação junguiana e autor do livro “Stress o coelho de Alice tem sempre muita pressa”.

Foto: Divulgação

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